2 de abril de 2014

Quebra-Cabeça

Estranho como ele sempre soube. Enquanto todas as pessoas passavam por ele, como se nunca tivessem percebido a sua presença, ele sempre soube. Sentia a diferença, por debaixo da pele, se espalhando pelos seus membros. Era impossível não perceber que alguma coisa sempre estivera errada, que seu corpo não tinha sido feito num molde destinado a encaixar com o resto. Ele era uma peça sobressalente, uma peça extra.

Não conhecia seu objetivo. Na verdade, nem sabia se tinha um. Queria poder tocar os outros e mostrar-lhes as cores que ele via, mas ele não passava de uma sombra se esgueirando pela calçada quando a luz do poste, de relance, lhe atingia. Os outros, tão acostumados aos tons de cinza que viam, não se davam ao trabalho de notar aquele rastro colorido que ele deixava quando se recolhia para descansar.

Vivia cansado daquele mundo. Vivia cansado daquelas pessoas automáticas que seguiam o mesmo traçado de outras pessoas, como um mapa que deveria leva-las a algum lugar desconhecido. Engraçado como ninguém nunca tinha se perguntado onde isso ficaria. Talvez não quisessem admitir que sabiam que estavam andando em círculos. O mundo era uma bola, afinal.

Não havia mesmo o que fazer, nem olhos capazes de enxergar o que ele via. Ouvidos, talvez não houvesse mais, pois de vez em quando gritava, cortando o silêncio da noite, mas nunca tinha escutado nenhuma resposta além de seu próprio eco. Este reverberava pelas paredes, feitas para bloquear qualquer pensamento intruso.

Mas foi enquanto andava pela chuva daquele inverno, já acostumado com o frio que sempre fazia lá fora, que a tinha escutado cantar. Não conhecia melodia, não sabia que tal coisa poderia existir em meio aos humanos. Pensou que estava morto, afinal, e tinha se libertado de ser um ser à parte, alheio a toda e qualquer falta de manifestação que constantemente o cercava. Porém aquela voz o alcançava, mesmo que os outros não pudessem ouvir.

Ela se aproximava, ele tinha parado para esperar. Deixou uma lágrima escorrer, de cor azul, misturada com a chuva. Alguma coisa dentro de si acordou, começou a bater novamente. Tinha esquecido dessa sensação. Tinha esquecido de tanta coisa. E quando ela tocou-lhe a face, sorrindo, ele não pôde deixar de falar com aquela voz que era sua, mas que também nunca tinha escutado antes:

- Como você me achou?

E ela respondeu, enquanto também brilhava:

- Segui as suas cores e as transformei em melodia. Você pode me escutar?

E então ele percebeu que não era mais uma peça extra. Na verdade, ele era parte de outra coisa maior, outra coisa melhor. Parte de uma máquina invisível para quem não se encaixava nela.

A única certeza que sempre tivera era a da sua própria companhia, enquanto as pessoas eventualmente iam e vinham. Tentava fazer com que o vissem, mas agora isso de nada importava. Ele tinha achado algo do qual fazia parte.

Ele não estava mais sozinho.

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